O nosso país convive atualmente com o grande
caos causado pela violência que corrói como um câncer todas as camadas da
sociedade. Uma demonstração feroz dos agentes dessa violência pôde ser
acompanhada por toda a população durante os ataques de facções criminosas a
agentes das polícias em São
Paulo e em alguns outros pontos do país. Atos de vandalismo,
terrorismo, violência e desrespeito aos direitos humanos e a cidadania
transformaram o Brasil em palco para um grande espetáculo de terror e medo. Por
trás disso tudo estavam os comandantes do tráfico de drogas, atividade
criminosa que mais traz lucro aos bandidos.
Dentro
desse clima de medo, insegurança e terror, entrou em vigor a Lei n. 11.343, a Nova Lei de
Tóxico, de 23 de agosto de 2006. Um dos pontos mais altos desta nova Lei é que
o simples usuário e dependente não é mais considerado como um criminoso,
recebendo punições apenas preventivas, de atenção e de reinserção social,
conforme o capítulo III, artigos 27
a 30 da referida Lei. Todavia, esta nova Lei nos traz
algumas indagações, alguns pontos críticos que vale a pena ser avaliados.
O
primeiro ponto crítico diz respeito àquilo que é lícito e ilícito nas
conformidades da lei. O texto da Lei mostra aquilo que se entende como as
drogas passivas das penalidades prescritas, que são “as substâncias ou os
produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou
relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da
União”, conforme o parágrafo único do artigo primeiro. Como aprendemos desde a
mais tenra idade escolar, estas substâncias são as chamadas “drogas ilícitas”,
como a maconha, a cocaína, a heroína, o crack, o ecstasy, o LSD, os inalantes e
muitas outras. São essas que movimentam bilhões, são essas que seduzem jovens
para o tráfico de drogas, que promovem a criação de facções criminosas, e que,
em fim, promovem todo esse caos que conhecemos bem.
Mas
o que dizer das drogas lícitas, aquelas que não são proibidas por lei, que não
são as preferidas dos traficantes, mas que promovem os mesmos problemas das
ilícitas? Tomemos como exemplo o consumo de bebidas alcoólicas e de cigarros,
as duas drogas mais poderosas e mais consumidas no mundo inteiro. Certamente os
redatores da Lei de Tóxicos não estavam pensando nelas quando criaram e
redigiram a lei. Elas podem não afzer parte do tráfico de drogas usual, mas são
contrabandeadas e falsificadas, causando grandes males à saúde do cidadão e
prejuízos tributários à nação. Então vejamos alguns problemas causados pelas
drogas ilícitas à saúde do usuário:
Maconha:
náuseas,
dependência psíquica, falta de iniciativa, queda de rendimento e capacidade de
atenção, psicoses, depressões, confusão mental, dificuldade de compreensão e
comunicação clara; prejuízo do tempo de avaliação de distâncias, prejuízos para
vias respiratórias e lesões pulmonares, etc.
Cocaína:
alto
potencial de dependência psíquica, consumo freqüente e em quantidades
excessivas devido ao seu efeito bastante curto, convulsões, derrames, ataques
cardíacos, risco de paralisia fatal em caso de overdose, depressão, mania de
perseguição, alucinações e outras perturbações psíquicas, destruição do septo
nasal, etc.
Crack: dependência física e
psíquica, lesões pulmonares, perda de apetite, pressão sanguínea alta, atitudes
mais agressivas e violentas, doenças mentais, percepção do ambiente e da
realidade como ameaçadores e hostis.
Ecstasy:
elevado
grau de dependência psíquica, esgotamento geral até um colapso físico,
paranóia, depressão, falhas de memória, possíveis ataques cardíacos, natimortos
de gestantes consumidoras da droga; misturado com álcool aumenta o risco de
reações adversas, etc.
Heroína:
overdose
(causada pelo consumo intravenoso), dependência severa física e psíquica,
manifestações da síndrome de abstinência durante a interrupção do consumo,
risco de desmaio, podendo ocorrer sufocação com o próprio vômito e/ou paralisia
respiratória durante a overdose, podendo levar a morte; total degradação do
usuário, risco de contaminação com HIV, hepatite e infecções bacterianas devido
ao uso de seringas, etc.
LSD: dependência psíquica,
sensações que provocam fortes tremores e pânico, aceitação de riscos
incontroláveis devido ao estado de humor e as sensações produzidas pela droga,
estados psicóticos que eventualmente podem resultar em suicídio, etc.
Inalantes:
dependência
física e psíquica, risco de sofrer de Síndrome da Morte Súbita, danos ao
aparelho respiratório, fígado, coração, cérebro, rins, medula óssea e outros
órgãos, Síndrome de Abstinência Fetal em recém-nascidos, com eventuais
conseqüências fatais, prejuízos de memória, de falta de atenção e de capacidade
intelectual, morte por parada cardíaca, asfixia, etc.
Agora comparemos com os principais
problemas causados pelo consumo abusivo de álcool e tabaco, consideradas
lícitas:
Tabaco
(nicotina): dependência
física e psíquica; na ausência repentina pode produzir depressão,
irritabilidade, inquietação, ansiedade, etc.; estreitamento e calcificação dos
vasos sanguíneos e paralisia dos mecanismos autolimpantes das vias
respiratórias, prejuízos circulatórios, bronquite crônica, enfisema pulmonar,
câncer pulmonar e outras formas de câncer; em combinação com álcool e má
alimentação provoca diversos outros danos à saúde; fumar durante a gravidez
causa danos ao feto, etc.
Álcool:
dependência
física e psíquica, danos aos órgãos internos do usuário, principalmente o
fígado, estômago, pâncreas e rins, mas também o coração e o pulmão, podendo
afetar, também, as funções cerebrais, dando origem a problemas mentais;
alterações de personalidade, dificuldade de concentração, queda do rendimento
do trabalho intelectual, alucinações, delírios, problemas de visão e
coordenação, Síndrome da Abstinência Fetal e outros problemas, muitas vezes
fatais, em filhos de dependentes; misturado a medicamentos pode resultar em
emergências médicas, etc.
Como
podemos observar, os problemas causados pelas drogas ilícitas são iguais ou
similares aos causados pelas lícitas. Devemos levar em conta, ainda, os
problemas sociais e econômicos que ambas promovem. Em texto anterior (A vida
por um gole), especificamos diversos males sociais causados pelo consumo de
álcool. Logo, porque deve haver esta separação entre aquilo que é lícito e o
que é ilícito se ambos trazem praticamente os mesmos transtornos ao ser humano
e à sociedade? Porque o indivíduo que vende cocaína na esquina deve ser
considerado criminoso ao passo que o que vende cigarros no boteco fica impune?
Tanto um quanto outro não estão vendendo substâncias químicas que causam
dependência, conforme especificada no parágrafo único do artigo primeiro da Nova
Lei de Tóxico?
O
artigo 33, inciso II, parágrafo segundo diz que é crime “Induzir, instigar ou
auxiliar alguém ao uso indevido de droga”, sob pena de detenção de um a três
anos de detenção e multa. Se o álcool é uma droga tão perigosa quanto a
heroína, por exemplo, porque os produtores de comerciais de cervejas e outras
bebidas alcoólicas não respondem criminalmente por induzir seus consumidores ao
uso dessa droga? Porque os cantores de músicas de forró que fazem constante
apologia à embriaguez por cachaça não são condenados e presos? Segundo o
capítulo II, artigo 33, constitui crime “importar, exportar, remeter, preparar,
produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito,
transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo
ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo
com a determinação legal ou regulamentar”. Então, se as drogas lícitas
constituem os mesmos transtornos que as ilícitas, porque os fabricantes e
distribuidores de bebidas alcoólicas e de tabaco não estão passivos das penas
previstas nesta lei?
O
segundo ponto crítico diz respeito ao usuário de drogas ilícitas. Dependendo da
quantidade de drogas encontrada com o dependente e de suas antecedentes, ele
não é mais condenado por tráfico de drogas, recebendo penas mais leves. Em seu
capítulo III a Lei de Tóxicos procura atingir aquele que adquire, guarda, tem
em depósito, transporta ou traz consigo drogas, bem como semeia, cultiva e
colhe plantas para seu consumo pessoal restrito, sem intenção de vender ou
fornecer a outrem. As penas previstas no artigo 28 são: advertência sobre os
efeitos das drogas; prestação de serviços à comunidade e medida educativa de
comparecimento a programa ou curso educativo. Isto é bem razoável, uma vez que
o usuário de drogas necessita mais de uma medida educativa que punitiva.
Mas
se um comprador de mercadoria pirateada pode receber punição por crime de
receptação, por que o usuário de drogas não pode ser punido da mesma forma?
Afinal de contas, não está ele usufruindo do produto do crime? É a lei da
oferta e da procura: o produto (as drogas) só existe porque tem o comprador (os
usuários). Se as drogas e o tráfico de drogas existem, é porque existe uma
grande demanda destas substâncias entorpecentes. Se não houvesse essa demanda,
se as pessoas se conscientizassem do real perigo das drogas, de todos os
problemas que elas trazem ao usuário e a toda a sociedade, elas deixariam de
ser consumidas, não dando mais lucro aos traficantes, deixando de ser
comercializadas. Não haveria mais problemas com o tráfico de drogas.
Não
há como negar, mesmo que o mais simples usuário de drogas não mantenha no seu
quintal uma plantação de maconha ou no porão um laboratório de refino de
cocaína, mesmo que ele não transporte nem comercialize drogas, ele ainda é o
maior responsável pela existência delas. Ele não é considerado criminoso por
utilizar as drogas, mas foi para sustentar o seu vício que surgiu a atividade
criminosa ligada ao seu plantio, fabricação e comercialização. Toda a
problemática decorrente das drogas tem sua raiz e seu sentido no usuário comum.
Ainda
que indiretamente, cada usuário é responsável por todos os crimes praticados em
nome das drogas. Vejamos alguns: tráfico de drogas, onde até mesmo crianças e
adolescentes são utilizados (mulas, aviões), tráfico de armas, contrabando,
seqüestros, suborno de funcionários públicos, inclusive policiais, advogados,
juízes e promotores; assassinatos, lavagem de dinheiro, corrupção, chacinas,
assaltos, estupros, prostituição, extorsão e tudo mais que diga respeito ao
crime organizado. É o dinheiro da venda das drogas que financia todo esse
poderio dos bandidos. Sem venda, sem dinheiro; sem dinheiro, sem crime.
Até bem pouco tempo a
TV exibia uma campanha que mostrava que o dinheiro do consumo de drogas é que
financia a violência. É o dinheiro conseguido com a venda de entorpecentes ao
mais comum usuário que sustenta toda essa criminalidade. Isto quer dizer
claramente que, ao comprar um pacote com uma quantidade mínima de maconha pra
consumo próprio, o usuário está financiando assaltos, seqüestros, rebeliões,
crimes por encomenda, corrupção e uma variedade de outros delitos mais graves.
Policiais, pais de família, crianças, adolescentes e outros inocentes morrem
diariamente vitimados pelo consumo de drogas ilícitas. Quem é mais criminoso
nessa história: o que produz, o que distribui, o que vende ou o que compra a
droga? Quem é mais culpado: o que mata ou o que mandou matar?
O
que fazer diante dessa dura realidade? Como esconder esses fatos? Devemos crer
que a sociedade necessita de leis mais severas para punir com rigor os
responsáveis pelos crimes praticados em nome das drogas. A sociedade urge
mudanças nas suas leis para torná-las mais rigorosas e capazes. A população já
não suporta mais ficar refém nas mãos de bandidos, inclusive fardados e pagos
com o dinheiro dos seus impostos. Agora eles têm um trunfo nas mãos: o usuário
poderá consumir sua droga sem risco de ir para a cadeia, o que provavelmente
aumentará o seu consumo, que será feito mais livremente, sem medo dos rigores
da lei. Quantidades pequenas poderão ser transportadas, viciados comuns e sem
antecedentes criminais poderão ser usados.
O
que devemos esperar é que as leis mudem e que a venda de bebidas alcoólicas e
cigarros também seja considerada como crime de tráfico de drogas, porque é
justamente isso que eles são. Que a questão das drogas seja tratada como o
imenso problema que ela realmente é. Que se dê mais valor à vida e se proíba
tudo que pode causar artificialmente a morte. Para começar, seria interessante
responsabilizar criminalmente as empresas produtoras e distribuidoras das
drogas “lícitas” que diariamente matam pessoas no mundo inteiro e causam
diversos prejuízos à sociedade. Talvez seja interessante, também,
responsabilizar o Ministério Público por crime de conivência e negligência.
Ambos deveriam ser obrigados a pagar indenizações aos que sentirem-se lesados e
enganados pelas propagandas que prometem uma vida saudável e sociável através
do consumo de bebidas alcoólicas, bem como aos seus familiares. Que aquilo que
é “lícito” seja bom e traga progresso.
Coleção Drogas, Klaus H. G. Rehfeldt, ed.
Brasileitura.
Nova Lei de Tóxico, Arnaldo Oliveira Junior,
Mandamentos editora, Belo Horizonte, 2006.
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