Trabalho apresentado na disciplina
de Psicologia Organizacional do curso de Gestão de Recursos Humanos, UNP, Natal,
RN
Aluno: Mizael de Souza Xavier
Introdução
De acordo com a Gestalt, que estuda o processo de percepção, o
comportamento não é uma resposta a um estímulo como ele é, mas como o sujeito o
percebe. Nós agimos de acordo com o que achamos, com que estamos vendo e
criamos comportamentos baseados nisso. Aquilo que vemos não está isento de
preconceitos e é influenciado pelo meio e por diversos outros fatores. Por
isso, o comportamento deve ser estudado nos seus aspectos globais, nos quais as
partes estão sempre relacionadas ao todo.
Um exemplo interessante de percepção
visual preconceituosa que leva a comportamentos distorcidos da realidade,
pode-se encontrar nas páginas da Bíblia Sagrada. Ele está descrito no livro de
Números (capítulos 13 e 14) e faz parte dos primórdios da história do povo
hebreu, o qual viria a se tornar a nação de Israel, ou o povo de Deus. Antes de
entrarmos neste episódio, é preciso lembrar que, dentro daquele contexto
histórico, aquele povo tinha acabado de ser liberto milagrosamente do cativeiro
do Egito, onde trabalhava como escravo. Eles estavam, agora, caminhando pelo
deserto, rumo á terra prometida por Deus, Canaã. Saber disso é fundamental para
a compreensão do nosso exemplo, isto é, a terra que eles iriam espiar já havia
lhes sido prometida como herança pelo próprio Deus: independente das
circunstâncias, Canaã já era deles.
Moisés, o líder levantado pelo
Senhor para guiar o seu povo, seguindo instruções do próprio Deus, enviou
homens para espiar a terra de Canaã. O seu objetivo era de ver como era a terra
(se era fértil ou estéril, se tinha matas) e o povo que lá vivia (se forte ou
fraco, se poucos ou muitos). Após quarenta dias viajando por todo aquele
território, os espias voltaram e relataram tudo que haviam visto. A primeira
vista, o parecer dos espias era favorável: a terra emanava leite e mel, o seu
povo era poderoso e a cidade bastante fortificada. Então Calebe, que também
tinha ido espiar a terra, infamado pelo relato positivo, fez calar o povo
perante Moisés e disse: “Eia! Subamos, e possuamos a terra, porque certamente
prevaleceremos contra ela” (v. 30). Na sua visão, aquela era uma batalha já
ganha.
A reação dos outros espias, porém, foi
bastante contraditória e mostra que percepção eles de fato tiveram de tudo
aquilo que haviam visto em Canaã: “Não podemos subir contra aquele povo, porque
é mais forte do que nós. E diante dos filhos de Israel, infamaram a terra que
haviam espiado, dizendo: A terra pelo meio da qual passamos a espiar, é terra
que devora os seus moradores; e todo povo que vimos nela são homens de grande
estatura. Também vimos ali gigantes (os filhos de Enaque são descendentes de
gigantes) e éramos aos nossos próprios olhos como gafanhotos, e assim também o
éramos aos seus olhos” (vs. 31-33). Logo, dentro de um mesmo contexto e
situação, pessoas diversas possuíam visões totalmente diferentes e contrárias
uma da outra. Por que isso aconteceu?
Conforme aprendemos sobre a
perspectiva em Gestalt, a visão que temos de um objeto é um dado importante
para a compreensão do comportamento humano. Para os gestaltistas “entre o
estímulo que o meio oferece e a resposta do indivíduo, encontra-se o processo
de percepção” (BOCK, p. 60). Foi justamente esta percepção que determinou o
comportamento daqueles espias. Mas por que alguns se animaram diante do que
viram enquanto outros agiram com medo e se negaram a possuir aquela terra? Os
espias medrosos, por assim dizer, basearam a sua visão em traumas passados e
imagens equivocadas que vinham construindo de si durante longos anos. Vale
salientar que aqueles homens estavam acostumados a uma vida de escravidão no
Egito, onde eles eram considerados apenas como objetos, como mão de obra nas
construções faraônicas. Eles, na verdade, não possuíam valor algum. Quando
espiaram Canaã e se depararam com gigantes, esse sentimento de inferioridade
veio à tona e acionou um gatilho em sua mente que afirmava que eles jamais
conseguiriam sobrepujar aquele povo e tomar a sua terra. Eles foram
condicionados a agir como escravos, como “nadas” e as suas ações se baseavam
ainda nessa ideia preconceituosa: Eles são fortes, nós somos fracos.
A prova de que as ações daqueles
homens e daquele povo eram determinadas por uma visão distorcida de si mesmos,
construída com o passar dos anos, está nos versículos posteriores, no capítulo
14. O desânimo dos espias contagiou toda a congregação, que regressou mentalmente
à época em que ainda eram escravos e desejaram voltar às cadeias e ao trabalho
forçado. Eles diziam: “Não nos seria melhor voltarmos para o Egito?” (14:3).
Agora, a percepção errada dos espias passava a fazer parte de uma mentalidade
coletiva que, diga-se de passagem, não havia presenciado nada, mas apenas agido
de acordo com as percepções dos outros. Na verdade, eles ainda não se sentiam
um povo liberto, mas cativo. O cativeiro estava cravado em suas mentes.
Mas ainda havia o grupo daqueles que
regressaram animados de Canaã e desejavam tomar para si aquela terra. Eram
Josué e Calebe, que rasgaram suas vestes como demonstração da sua indignação e
disseram: “A terra pelo meio da qual passamos a espiar é muitíssimo boa. Se o
Senhor se agradar de nós nos fará entrar nessa terra, e no-la dará: terra que
mana leite e mel” (vs. 7,8). Ainda assim, a congregação disse que os
apedrejassem. O seu medo era maio que as promessas de Deus, maior que a certeza
de que aquela terra já era deles e não havia motivos para se preocuparem. Josué
e Calebe, tendo a imagem da realidade livre da influência do passado escravo,
estavam motivados a prosseguir.
O que percebemos, então, é que
inúmeros fatores podem influenciar na percepção que temos das coisas. Uma mesma
figura – ou situação – pode ser vista de maneiras diferentes por pessoas
distintas e tudo dependerá de quais fatores influenciadores estão agindo no
momento: traumas, complexos, preconceitos, aprendizado desvirtuado da
realidade, mensagens distorcidas, baixa autoestima, falta de fé (como
claramente estava presente naqueles homens), desconfiança, conformismo, apatia.
Ou pode ser: segurança, visão otimista da realidade, autoestima em alta,
mensagens corretas, aprendizado sadio, disposição para enfrentar a adversidade,
coragem, fé. Parece que a resposta que daremos a cada estímulo dependerá tão
somente das nossas disposições interiores (mental, espiritual, emocional e
fisiológica). Mas não é só isso.
As nossas ações diante das questões
e situações que a vida nos apresenta dependerá das respostas que daremos a cada
estímulo. Um exemplo clássico é o de uma criança exposta a um ambiente hostil e
outra a um ambiente de cuidado afetivo. Uma está rodeada de brigas entre os
pais e dos mais diversos problemas sociais (drogas e violência urbana, por
exemplo); a outra vive numa família ajustada e mantém contato apenas com coisas
sadias e prazerosas (lazer, boa educação, por exemplo). Que respostas esperamos
da primeira criança aos estímulos exteriores? E da segunda? Geralmente
acreditamos que a primeira criança, por conta do seu meio, desenvolverá
distúrbios sociais e de personalidade, enquanto a segunda crescerá como um
“cidadão exemplar”. Isto pode estar correto em alguns casos, mas não em todos.
A percepção que cada um terá da realidade pode estar impregnada pelo meio em
que vivem e pelos estímulos que recebem desse meio, mas a resposta a cada um
desses estímulos – positivos ou negativos – dependerá de cada indivíduo.
Muitas pessoas que durante a sua
infância sofreram todo tipo de agressão à sua autoestima, acabam se
transformando em pessoas dóceis, seguras do seu valor, confiantes e dispostas a
pagar com o bem todo mal que receberam. Não existe escola de bandidos e escola
de mocinhos; o que existe é a resposta individual que cada um dará aos
estímulos recebidos. Por isso, muitas crianças criadas em lares sadios, onde a
sua autoestima é cultivada e onde não lhes falta o necessário para a sua
sobrevivência, acabam se tornando indivíduos problemáticos e até mesmo
delinquentes juvenis. Apesar de todos os estímulos positivos que receberam
durante toda a sua infância, findaram desenvolvendo atitudes negativas. Esse é,
segundo a teoria da Gestalt, o seu “meio comportamental”, isto é, “o meio
resultante da interação do indivíduo com o meio físico”, que “implica a
interpretação desse meio através das forças que regem a percepção (equilíbrio,
simetria, estabilidade e simplicidade)” (idem, p. 63).
Dentro da nossa discussão, porem, o
indivíduo parece agir em total desacordo com os estímulos do seu meio em dados
casos, o que torna o estudo do comportamento humano algo ainda mais complicado.
Assim como vemos uma pessoa de longe e a confundimos com alguém que conhecemos,
porque “nossa percepção do estímulo (a pessoa desconhecida) naquelas condições
ambientais dadas é mediatizada pela forma como interpretamos o conteúdo
recebido” (idem, p. 62), parecemos observar a realidade e confundi-la também. Existem quatro tipos de respostas aos
estímulos recebidos[1]:
·
Uma
resposta positiva a estímulos positivos: por exemplo, uma criança é
estimulada a estudar e responde positivamente a esse estímulo, tornando-se um
ótimo aluno. Ou um funcionário de uma empresa recebe treinamento e é motivado a
trabalhar melhor para aumentar seu percentual de ganho e procura de fato
melhorar e crescer.
·
Uma
resposta negativa a estímulos positivos: no caso, a criança, embora
recebendo estímulos positivos para que estude, dá uma resposta negativa,
tornando-se um estudante problemático. Ou o funcionário que é motivado não se
deixa motivar interiormente e age em desacordo com o que é esperado dele.
·
Uma
resposta positiva a estímulos negativos: por exemplo, uma criança
que recebe um estímulo para usar drogas responde positivamente e faz uso delas.
No caso do funcionário, quando a empresa não investe nele e não o trata com o
devido valor, ele permite que isso permeie a sua vida profissional, acomodando-se
a esta situação e se transformando realmente em um profissional sem valor.
·
Uma
resposta negativa a estímulos negativos: ao ser estimulada a usar
drogas, a criança diz não. No mundo empresarial isso acontece muito, pois nem
todas as empresas estimulam e recompensam seus funcionários; ainda assim eles
podem responder positivamente e se tornarem profissionais ainda melhores,
utilizando-se da pressão negativa para produzir efeitos positivos
(resiliência).
O que determinará cada tipo de resposta a cada estímulo recebido é o
nosso caráter, e este pode ser moldado por fatores ainda mais complexos que
podem ser mais bem estudados em outra oportunidade. De momento, porém, basta
entendermos a questão da percepção e da resposta que damos a ela, o que
influenciará profundamente as nossas ações na vida e na empresa, se pensarmos
em termos de Gestão de Recursos Humanos. A forma como vemos e percebemos a
empresa, a maneira como respondemos aos estímulos por ela oferecidos é que
determinará a nossa atitude e conduzirá as nossas ações no cargo que ocupamos.
E, conforme vimos, isto pode ser direcionado para algo positivo ou negativo.
Tudo dependerá de nós, sempre.
A teoria de campo de Kurt Lewin deixa isso ainda mais em evidência e nos
remete, outra vez, aos espias relatados anteriormente. Lewin conceitua o espaço
vital, definido por ele como “a totalidade dos fatos que determinam o
comportamento do indivíduo num certo momento” (idem p. 65). Que fatos
determinaram o comportamento dos espias? Com certeza não foi apenas a sua baixa
estatura, mas, como já vimos, existia toda uma gama de fatores relacionados à
sua atitude negativa, inclusive espirituais, como a falta de fé nas promessas
de Deus. Isto cabe na teoria de Lewin, que concebe como campo psicológico algo
mais dinâmico, onde não somente o indivíduo e o seu meio são agentes
influenciadores, mas “a totalidade dos fatos existentes e mutuamente
interdependentes” (idem). Toda a vida psíquica, social, religiosa e relacional
do indivíduo está presente nas respostas que ele dá aos estímulos que recebe,
na sua visão de mundo, no seu mover pela vida. Nada do que ele pense, fale ou
faça está isento disto.
Lewin também nos leva a descobrir explicações ainda mais convincentes
para o quadro apresentado acima. É a sua concepção de realidade fenomênica que
compreende o meio comportamental da Gestalt, ou seja “a maneira particular como
o indivíduo interpreta uma determinada situação” (idem, p. 66). Mais que um
fenômeno fisiológico, esta concepção está ligada “a característica de
personalidade do indivíduo, a componentes emocionais ligados ao grupo e à
própria situação vivida, assim como a situações passadas e que estejam ligadas
ao acontecimento, na forma em que são representadas no espaço de vida atual do
indivíduo” (idem). No caso dos espias, a sua situação diante daquele povo
gigante em uma terra desconhecida e aparentemente hostil, os fez lembrar quem
eles achavam que eram: escravos, pessoas fracas, desprezadas e sem valor algum
para a sociedade dominante. Uma visão distorcida da própria realidade interior
leva à distorção da realidade externa.
As informações recebidas são armazenadas no banco de dados da nossa memória
psíquica e podem ser ativadas a qualquer instante, quando a situação exigir.
Por exemplo: um funcionário de uma grande empresa é promovido ao cargo de
gerente, porque o empresário apreciou o seu currículo e as suas ações na
empresa e o acha capaz para ocupar o cargo. Na memória desse funcionário,
porém, reaparecem informações negativas que recebera na infância, avisando que
ele não tem capacidade nem competência para ocupar o cargo e que por isso deve
abrir mão da promoção. Diante de uma situação – a proposta de promoção – ele
evoca uma visão totalmente distorcida de si mesmo, construída ao logo dos anos
e se vê realmente incapaz de assumir sua nova função, mesmo tendo toda
capacidade para isso. Foi uma resposta negativa a um estímulo positivo. Outra
pessoa que tivesse recebido as mesmas informações negativas que ele poderia dar
uma resposta positiva a sua nova função.
Podemos concluir afirmando que há certa dificuldade em ditar um padrão
para o comportamento humano, seja estudando as percepções e os estímulos, seja
na tentativa de explicar o seu comportamento em situações diversas, ou buscando
compreender, como Freud, o seu psiquismo (consciente, pré-consciente,
inconsciente). Como pudemos notar, mesmo os estímulos positivos não estão
isentos de receber respostas negativas, ou os estímulos negativos, respostas
igualmente negativas. Não é sem razão que o Dr. Augusto Jorge Cury (2006, p.
86-87), psiquiatra e estudioso do pensamento, escreve:
... um
pai alcoólatra, agressivo e socialmente alienado poderá gerar dois filhos com
personalidades totalmente distintas, pois a cada momento da interpretação eles
possuem variáveis intrapsíquicas qualitativamente diferentes, que interpretarão
os estímulos advindos do pai de maneira diferente, gerando construções
psicodinâmicas diferentes; que se arquivarão em suas memórias como RPSs
[Representações Psicodinâmicas] diferentes; que produzirão histórias
diferentes; que sofrerão leituras multifocais e financiarão a produção de matizes
de pensamentos essenciais diferentes; que sofrerão um processo de leitura
virtual e produzirão pensamentos dialéticos e antidialéticos diferentes; que,
finalmente, estimularão e redimensionarão o desenvolvimento da personalidade
por trajetórias diferentes.
Em suma, cabe à realidade psíquica
de cada indivíduo atuar sobre a realidade externa e seus estímulos, produzindo
ações e reações tão diversas quanto à complexidade da existência humana. O que
determinará cada pensamento, cada ação cada atuação na história dependerá de
como cada um absorve e assimila as informações recebidas, o valor que lhes
comuta; as respostas serão apenas um reflexo da somatória desses fatores. Se
positivas ou negativas, no momento em que ocorrem, o que decidirá é aquilo que
cada um plantou e cuidou dentro de si. Como afirma a Bíblia: “Não é o que entra
pela boca que contamina o homem, mas o que sai da boca... o que sai da boca vem
do coração, e é isso que contamina o homem” (Mateus 15:11,18).
Percepção tátil
O tato estimula a nossa mente e
evoca recordações, podendo gerar comportamentos. Tais comportamentos não são,
segundo a teoria da Gestalt, uma resposta a um estímulo como ele é, mas como o
sujeito o percebe. Por exemplo: para a maioria das mulheres, serem tocadas
afetivamente por um homem tende a gerar uma sensação de prazer, bem-estar e
segurança. Para algumas que sofreram algum tipo de abuso sexual na infância,
acima de tudo se partido do próprio genitor, o fato de receber o estímulo do
toque de um homem pode evocar distorções da realidade, trazendo sensações de
repugnância, desprezo, medo, indiferença, insegurança e até mesmo ódio. O mesmo
pode ocorrer se ela for aquela que deseja tocar.
Percepção gustativa
Assim como todas as outras
percepções, o paladar, uma vez estimulado, evoca todo tipo de reações, boas e
ruins. Isto porque não sentimos a realidade do que estamos degustando em si,
mas a gama de percepções que isto nos traz. Os dois exemplos que posso dar,
tiro-os da minha própria experiência de vida. Quando vim morar no nordeste pela
primeira vez, eu tinha 14 anos de idade. Antes de rumar para cá com uma tia do
interior, passamos por São Paulo, onde nos hospedamos na casa de um tio, irmão
dela. No jantar, foi servido um prato típico do nordeste – cuscuz. Eu jamais
havia comido cuscuz e a sensação foi das piores, porque ele estava realmente
muito ruim, com um gosto nada agradável. Então, esta foi a primeira experiência
que tive na minha vida com este prato.
Quando chegamos ao nordeste e eu já
havia me instalado na casa da minha tia, no meu primeiro jantar, deparei mais
uma vez com o cuscuz. Assim que vi aquele aglomerado de farelo de milho cozido
sobre a mesa, a minha sensação foi de repulsa, porque imediatamente lembrei-me
da primeira vez que havia comido cuscuz em São Paulo. Lembrei do terrível gosto
que senti e relutei em comer mais uma vez. Porém, foi preciso encarar o tal
alimento e, ao colocá-lo na boca, vi que o gosto era totalmente diferente: era
delicioso! Logo percebi a diferença do cuscuz feito pela primeira cozinheira e
aquele preparado por minha tia. Lembrar do passado ativou uma perspectiva
distorcida em minha mente e me fez rejeitar interiormente aquela realidade, até
prová-la e perceber que era totalmente diferente.
Situação semelhante ocorreu quando
servi o exército, já de volta ao Rio de Janeiro, quando já tinha 19 anos. Em
alguns dias específicos eles serviam peixe na hora do almoço, e o gosto era
também insuportável. Durante quase um ano fui obrigado a comer aquele alimento
que minhas papilas gustativas rejeitavam veementemente, até que findei traumatizado.
Depois que fui dispensado do exército, carreguei comigo o trauma daquele peixe
que eu detestava comer. Em diversas situações deparei com peixes feitos daquela
maneira e sentia o gatilho disparar na minha mente, trazendo repulsa até mesmo
pelo cheiro que sentia. Ainda hoje, todas as vezes que como peixe meu organismo
me faz recordar do que eu comia no exército, isto é, a minha percepção
gustativa evoca uma realidade que já não existe e a vivencio como se ainda
acontecesse. Isto gera um comportamento distorcido da realidade, da imagem real
do peixe, me levando a rejeitá-lo.
Nisto podemos pensar sobre a negação
daquilo que é real em vista da distorção que fazemos da realidade. Quantas
experiências deixamos de ter, quantas situações deixamos de viver, quantas
coisas maravilhosas e construtivas deixamos de aproveitar por estarmos preso a
uma realidade que não existe mais. Negar-nos a viver o presente por medo do
passado, não somente nos impede de existir no hoje – estamos sempre presos ao
que não é mais – como também dificulta a construção do nosso amanhã. Na
verdade, parecemos evoluir em partes, não como um todo. Algumas partes que
formam o todo do nosso ser estão doentes e precisam ser cuidadas, para que a
nossa totalidade existencial possa se libertar e gerar comportamentos
condizentes com a realidade. Ainda que, segundo a teoria da Gestalt, jamais
observemos o objeto em si, mas a imagem que construímos dele, conforme vamos
nos apercebendo de nós mesmos e lidando com nossos traumas, mais nos abrimos para
dar as respostas certas aos estímulos certos e, desta forma, transformar toda a
nossa realidade psíquica, emocional, espiritual, fisiológica e, por fim, a
nossa realidade social (nosso relacionamento conosco, com as pessoas, com o
mundo e com Deus).
Percepção auditiva
A percepção auditiva também está
muito relacionada com a história de vida de cada indivíduo. Cada som que
ouvimos, seja numa música ou aqueles produzidos pelo ambiente (o barulho de uma
cachoeira, o latido de um cachorro, a buzina de um carro, por exemplo) evocam
lembranças que nos trazem percepções diferentes da realidade apresentada. No
exemplo da música, quando escutamos uma melodia romântica, podemos associá-la a
algum momento da nossa vida onde nos apaixonamos e vivemos uma linda história
de amor. A música deixa de ser uma realidade em si para se transformar na
sensação que desperta em nós, e esta pode ser tanto positiva quanto negativa,
dependendo das lembranças que nos traz.
Lembro-me de um tempo em que morei com minha esposa, hoje ex-esposa, e
meu filho numa casa cedida por um primo. Todos os dias, no mesmo horário, numa
rua próxima, um alto falante tocava as mesmas músicas num volume altissonante,
enquanto um homem apresentava as atrações do “Cine Estrela Dalva”, terminando
sempre com a palavra apelativa “anal”. Com o passar do tempo, aquele momento do
dia tornou-se uma tortura. Conforme a hora se aproximava, aumentava a minha
ansiedade; e durante o espetáculo de poluição sonora, meu transtorno de
ansiedade e raiva progredia. Muito tempo depois de sair dali, sempre que ouvia
tocar em algum lugar uma das músicas que faziam parte do repertório do Cine
Estrela Dalva, eu era acometido de um ataque de ansiedade e de pânico, como se
estivesse vivenciando naquele exato instante o mesmo trauma do passado. Demorei
muito tempo para me libertar disso.
Assim como as demais percepções, a
auditiva também gera comportamentos e mostra como percebemos a realidade que
nos cerca. Aqui podemos nos perguntar: Quem somos quando estamos vivenciando
uma experiência passada por meio da percepção de estímulos ocorridos no aqui e
agora? Se por alguns instantes nos distanciamos do objeto e da sua realidade
intrínseca, estamos, também, nos distanciando de nós mesmos? Percebemos, assim,
que a realidade em que vivemos aqui e agora está repleta da realidade que já
não é, pois o passado continua presente e atuante nas respostas que damos aos
estímulos que recebemos. Ribeiro (1985, p. 78) indaga: “Se o aqui e agora
traumatiza, o trauma vem dele ou da relação dele com o passado?”. Surge daí a
percepção do todo e das partes.
Devemos lembrar, porém, que esta
percepção é muito mais que fisiológica e está ligada ao meio em que o indivíduo
vive e àquilo que acontece com ele nesse meio. O homem não somente age com e na
história, mas também interage com ela, criando e transformando a sua realidade,
não apenas a partir de percepções como aquelas que estamos estudando aqui, mas
igualmente por meio das suas crenças e valores apreendidos, construídos no
decorrer de sua vida, onde todas essas percepções estão presentes, mas podem ou
não influenciá-lo direta ou indiretamente. É impossível criar generalizações.
Percepção olfativa
Tudo aquilo que dissemos a cerca das
percepções visual, tátil, gustativa e auditiva, pode ser computado à percepção
olfativa. Resta-nos apenas exemplificar. Posso citar, mais uma vez, exemplos da
minha própria experiência para demonstrar a distorção da realidade presente na
percepção olfativa. Alguns aromas que sinto de comidas, das ruas ou algum outro,
reportam-me imediatamente a São Paulo, onde morei por um ano e meio. É como se
eu entrasse numa máquina do tempo e voltasse aos meus 16 anos. Sou capaz de me
situar mentalmente e verdadeiramente sentir até mesmo o clima da cidade do
passado, como se estivesse realmente lá. O mesmo acontece com certos cheiros da
natureza, que me remetem à minha infância vivida em Petrópolis, cidade serrana
do Rio de Janeiro. Do aqui e agora sou transportado para o passado e volto à
realidade em questão de segundos.
Podemos observar que somos
construídos durante o decurso de nossa história de vida por fatores dos mais
variados possíveis, que continuam influenciando nossas percepções e gerando
comportamentos. Não é somente uma visão intuitiva da realidade ou de essência,
mas passa pela prática (Ribeiro), porque o ser humano se constrói e se
reinventa a cada dia, absorvendo realidades e irrealidades que constroem o seu
caráter, que influenciam no seu temperamento, nas suas decisões, nos seus
sonhos. Conforme nos diz Ribeiro (1999, p. 39), “Vemos que o SER, totalidade
essencial, se unifica absolutamente, engloba todas as demais realidades, como
essências individuais ou existência participante, e tudo se faz inteligível
nele e disponível à consciência como o modo de perceber a realidade”.
Desconstruir a imagem irreal para que a real – e ideal – retome o seu lugar,
deve fazer parte do processo terapêutico.
Bibliografia
BOCK, Ana
Mercês Bahia; FURTADO, Odair; TIXEIRA, Maria de Lourdes Trassi. Psicologias: uma introdução ao estudo da
psicologia. 13. ed. São
Paulo: Saraiva, 1999.
CURY,
Augusto Jorge. Inteligência Multifocal. São Paulo: Cultrix, 2006.
DEUS. Bíblia Sagrada. Sociedade Bíblica do Brasil, ed. Revista e Atualizada, São Paulo,
1990.
RIBEIRO,
Jorge Ponciano. Gestalt-Terapia de curta
duração. São Paulo: Summus, 1999.
_____________.
Gestalt-Terapia: refazendo um caminho. São Paulo: Summus, 1985.
Mizael de
Souza Xavier
25 e 26 de
fevereiro de 2012.
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