sábado, 12 de maio de 2012

DIFERENTES TIPOS DE PERCEPÇÃO EM GESTALT


Trabalho apresentado na disciplina de Psicologia Organizacional do curso de Gestão de Recursos Humanos, UNP, Natal, RN

Aluno: Mizael de Souza Xavier



Introdução


De acordo com a Gestalt, que estuda o processo de percepção, o comportamento não é uma resposta a um estímulo como ele é, mas como o sujeito o percebe. Nós agimos de acordo com o que achamos, com que estamos vendo e criamos comportamentos baseados nisso. Aquilo que vemos não está isento de preconceitos e é influenciado pelo meio e por diversos outros fatores. Por isso, o comportamento deve ser estudado nos seus aspectos globais, nos quais as partes estão sempre relacionadas ao todo.


 Percepção visual


            Um exemplo interessante de percepção visual preconceituosa que leva a comportamentos distorcidos da realidade, pode-se encontrar nas páginas da Bíblia Sagrada. Ele está descrito no livro de Números (capítulos 13 e 14) e faz parte dos primórdios da história do povo hebreu, o qual viria a se tornar a nação de Israel, ou o povo de Deus. Antes de entrarmos neste episódio, é preciso lembrar que, dentro daquele contexto histórico, aquele povo tinha acabado de ser liberto milagrosamente do cativeiro do Egito, onde trabalhava como escravo. Eles estavam, agora, caminhando pelo deserto, rumo á terra prometida por Deus, Canaã. Saber disso é fundamental para a compreensão do nosso exemplo, isto é, a terra que eles iriam espiar já havia lhes sido prometida como herança pelo próprio Deus: independente das circunstâncias, Canaã já era deles.

            Moisés, o líder levantado pelo Senhor para guiar o seu povo, seguindo instruções do próprio Deus, enviou homens para espiar a terra de Canaã. O seu objetivo era de ver como era a terra (se era fértil ou estéril, se tinha matas) e o povo que lá vivia (se forte ou fraco, se poucos ou muitos). Após quarenta dias viajando por todo aquele território, os espias voltaram e relataram tudo que haviam visto. A primeira vista, o parecer dos espias era favorável: a terra emanava leite e mel, o seu povo era poderoso e a cidade bastante fortificada. Então Calebe, que também tinha ido espiar a terra, infamado pelo relato positivo, fez calar o povo perante Moisés e disse: “Eia! Subamos, e possuamos a terra, porque certamente prevaleceremos contra ela” (v. 30). Na sua visão, aquela era uma batalha já ganha.

             A reação dos outros espias, porém, foi bastante contraditória e mostra que percepção eles de fato tiveram de tudo aquilo que haviam visto em Canaã: “Não podemos subir contra aquele povo, porque é mais forte do que nós. E diante dos filhos de Israel, infamaram a terra que haviam espiado, dizendo: A terra pelo meio da qual passamos a espiar, é terra que devora os seus moradores; e todo povo que vimos nela são homens de grande estatura. Também vimos ali gigantes (os filhos de Enaque são descendentes de gigantes) e éramos aos nossos próprios olhos como gafanhotos, e assim também o éramos aos seus olhos” (vs. 31-33). Logo, dentro de um mesmo contexto e situação, pessoas diversas possuíam visões totalmente diferentes e contrárias uma da outra. Por que isso aconteceu?

            Conforme aprendemos sobre a perspectiva em Gestalt, a visão que temos de um objeto é um dado importante para a compreensão do comportamento humano. Para os gestaltistas “entre o estímulo que o meio oferece e a resposta do indivíduo, encontra-se o processo de percepção” (BOCK, p. 60). Foi justamente esta percepção que determinou o comportamento daqueles espias. Mas por que alguns se animaram diante do que viram enquanto outros agiram com medo e se negaram a possuir aquela terra? Os espias medrosos, por assim dizer, basearam a sua visão em traumas passados e imagens equivocadas que vinham construindo de si durante longos anos. Vale salientar que aqueles homens estavam acostumados a uma vida de escravidão no Egito, onde eles eram considerados apenas como objetos, como mão de obra nas construções faraônicas. Eles, na verdade, não possuíam valor algum. Quando espiaram Canaã e se depararam com gigantes, esse sentimento de inferioridade veio à tona e acionou um gatilho em sua mente que afirmava que eles jamais conseguiriam sobrepujar aquele povo e tomar a sua terra. Eles foram condicionados a agir como escravos, como “nadas” e as suas ações se baseavam ainda nessa ideia preconceituosa: Eles são fortes, nós somos fracos.

            A prova de que as ações daqueles homens e daquele povo eram determinadas por uma visão distorcida de si mesmos, construída com o passar dos anos, está nos versículos posteriores, no capítulo 14. O desânimo dos espias contagiou toda a congregação, que regressou mentalmente à época em que ainda eram escravos e desejaram voltar às cadeias e ao trabalho forçado. Eles diziam: “Não nos seria melhor voltarmos para o Egito?” (14:3). Agora, a percepção errada dos espias passava a fazer parte de uma mentalidade coletiva que, diga-se de passagem, não havia presenciado nada, mas apenas agido de acordo com as percepções dos outros. Na verdade, eles ainda não se sentiam um povo liberto, mas cativo. O cativeiro estava cravado em suas mentes.

            Mas ainda havia o grupo daqueles que regressaram animados de Canaã e desejavam tomar para si aquela terra. Eram Josué e Calebe, que rasgaram suas vestes como demonstração da sua indignação e disseram: “A terra pelo meio da qual passamos a espiar é muitíssimo boa. Se o Senhor se agradar de nós nos fará entrar nessa terra, e no-la dará: terra que mana leite e mel” (vs. 7,8). Ainda assim, a congregação disse que os apedrejassem. O seu medo era maio que as promessas de Deus, maior que a certeza de que aquela terra já era deles e não havia motivos para se preocuparem. Josué e Calebe, tendo a imagem da realidade livre da influência do passado escravo, estavam motivados a prosseguir.

            O que percebemos, então, é que inúmeros fatores podem influenciar na percepção que temos das coisas. Uma mesma figura – ou situação – pode ser vista de maneiras diferentes por pessoas distintas e tudo dependerá de quais fatores influenciadores estão agindo no momento: traumas, complexos, preconceitos, aprendizado desvirtuado da realidade, mensagens distorcidas, baixa autoestima, falta de fé (como claramente estava presente naqueles homens), desconfiança, conformismo, apatia. Ou pode ser: segurança, visão otimista da realidade, autoestima em alta, mensagens corretas, aprendizado sadio, disposição para enfrentar a adversidade, coragem, fé. Parece que a resposta que daremos a cada estímulo dependerá tão somente das nossas disposições interiores (mental, espiritual, emocional e fisiológica). Mas não é só isso.

            As nossas ações diante das questões e situações que a vida nos apresenta dependerá das respostas que daremos a cada estímulo. Um exemplo clássico é o de uma criança exposta a um ambiente hostil e outra a um ambiente de cuidado afetivo. Uma está rodeada de brigas entre os pais e dos mais diversos problemas sociais (drogas e violência urbana, por exemplo); a outra vive numa família ajustada e mantém contato apenas com coisas sadias e prazerosas (lazer, boa educação, por exemplo). Que respostas esperamos da primeira criança aos estímulos exteriores? E da segunda? Geralmente acreditamos que a primeira criança, por conta do seu meio, desenvolverá distúrbios sociais e de personalidade, enquanto a segunda crescerá como um “cidadão exemplar”. Isto pode estar correto em alguns casos, mas não em todos. A percepção que cada um terá da realidade pode estar impregnada pelo meio em que vivem e pelos estímulos que recebem desse meio, mas a resposta a cada um desses estímulos – positivos ou negativos – dependerá de cada indivíduo.

            Muitas pessoas que durante a sua infância sofreram todo tipo de agressão à sua autoestima, acabam se transformando em pessoas dóceis, seguras do seu valor, confiantes e dispostas a pagar com o bem todo mal que receberam. Não existe escola de bandidos e escola de mocinhos; o que existe é a resposta individual que cada um dará aos estímulos recebidos. Por isso, muitas crianças criadas em lares sadios, onde a sua autoestima é cultivada e onde não lhes falta o necessário para a sua sobrevivência, acabam se tornando indivíduos problemáticos e até mesmo delinquentes juvenis. Apesar de todos os estímulos positivos que receberam durante toda a sua infância, findaram desenvolvendo atitudes negativas. Esse é, segundo a teoria da Gestalt, o seu “meio comportamental”, isto é, “o meio resultante da interação do indivíduo com o meio físico”, que “implica a interpretação desse meio através das forças que regem a percepção (equilíbrio, simetria, estabilidade e simplicidade)” (idem, p. 63).

            Dentro da nossa discussão, porem, o indivíduo parece agir em total desacordo com os estímulos do seu meio em dados casos, o que torna o estudo do comportamento humano algo ainda mais complicado. Assim como vemos uma pessoa de longe e a confundimos com alguém que conhecemos, porque “nossa percepção do estímulo (a pessoa desconhecida) naquelas condições ambientais dadas é mediatizada pela forma como interpretamos o conteúdo recebido” (idem, p. 62), parecemos observar a realidade e confundi-la também.  Existem quatro tipos de respostas aos estímulos recebidos[1]:



·         Uma resposta positiva a estímulos positivos: por exemplo, uma criança é estimulada a estudar e responde positivamente a esse estímulo, tornando-se um ótimo aluno. Ou um funcionário de uma empresa recebe treinamento e é motivado a trabalhar melhor para aumentar seu percentual de ganho e procura de fato melhorar e crescer.

·         Uma resposta negativa a estímulos positivos: no caso, a criança, embora recebendo estímulos positivos para que estude, dá uma resposta negativa, tornando-se um estudante problemático. Ou o funcionário que é motivado não se deixa motivar interiormente e age em desacordo com o que é esperado dele.

·         Uma resposta positiva a estímulos negativos: por exemplo, uma criança que recebe um estímulo para usar drogas responde positivamente e faz uso delas. No caso do funcionário, quando a empresa não investe nele e não o trata com o devido valor, ele permite que isso permeie a sua vida profissional, acomodando-se a esta situação e se transformando realmente em um profissional sem valor.

·         Uma resposta negativa a estímulos negativos: ao ser estimulada a usar drogas, a criança diz não. No mundo empresarial isso acontece muito, pois nem todas as empresas estimulam e recompensam seus funcionários; ainda assim eles podem responder positivamente e se tornarem profissionais ainda melhores, utilizando-se da pressão negativa para produzir efeitos positivos (resiliência).


O que determinará cada tipo de resposta a cada estímulo recebido é o nosso caráter, e este pode ser moldado por fatores ainda mais complexos que podem ser mais bem estudados em outra oportunidade. De momento, porém, basta entendermos a questão da percepção e da resposta que damos a ela, o que influenciará profundamente as nossas ações na vida e na empresa, se pensarmos em termos de Gestão de Recursos Humanos. A forma como vemos e percebemos a empresa, a maneira como respondemos aos estímulos por ela oferecidos é que determinará a nossa atitude e conduzirá as nossas ações no cargo que ocupamos. E, conforme vimos, isto pode ser direcionado para algo positivo ou negativo. Tudo dependerá de nós, sempre.

A teoria de campo de Kurt Lewin deixa isso ainda mais em evidência e nos remete, outra vez, aos espias relatados anteriormente. Lewin conceitua o espaço vital, definido por ele como “a totalidade dos fatos que determinam o comportamento do indivíduo num certo momento” (idem p. 65). Que fatos determinaram o comportamento dos espias? Com certeza não foi apenas a sua baixa estatura, mas, como já vimos, existia toda uma gama de fatores relacionados à sua atitude negativa, inclusive espirituais, como a falta de fé nas promessas de Deus. Isto cabe na teoria de Lewin, que concebe como campo psicológico algo mais dinâmico, onde não somente o indivíduo e o seu meio são agentes influenciadores, mas “a totalidade dos fatos existentes e mutuamente interdependentes” (idem). Toda a vida psíquica, social, religiosa e relacional do indivíduo está presente nas respostas que ele dá aos estímulos que recebe, na sua visão de mundo, no seu mover pela vida. Nada do que ele pense, fale ou faça está isento disto.

Lewin também nos leva a descobrir explicações ainda mais convincentes para o quadro apresentado acima. É a sua concepção de realidade fenomênica que compreende o meio comportamental da Gestalt, ou seja “a maneira particular como o indivíduo interpreta uma determinada situação” (idem, p. 66). Mais que um fenômeno fisiológico, esta concepção está ligada “a característica de personalidade do indivíduo, a componentes emocionais ligados ao grupo e à própria situação vivida, assim como a situações passadas e que estejam ligadas ao acontecimento, na forma em que são representadas no espaço de vida atual do indivíduo” (idem). No caso dos espias, a sua situação diante daquele povo gigante em uma terra desconhecida e aparentemente hostil, os fez lembrar quem eles achavam que eram: escravos, pessoas fracas, desprezadas e sem valor algum para a sociedade dominante. Uma visão distorcida da própria realidade interior leva à distorção da realidade externa.

As informações recebidas são armazenadas no banco de dados da nossa memória psíquica e podem ser ativadas a qualquer instante, quando a situação exigir. Por exemplo: um funcionário de uma grande empresa é promovido ao cargo de gerente, porque o empresário apreciou o seu currículo e as suas ações na empresa e o acha capaz para ocupar o cargo. Na memória desse funcionário, porém, reaparecem informações negativas que recebera na infância, avisando que ele não tem capacidade nem competência para ocupar o cargo e que por isso deve abrir mão da promoção. Diante de uma situação – a proposta de promoção – ele evoca uma visão totalmente distorcida de si mesmo, construída ao logo dos anos e se vê realmente incapaz de assumir sua nova função, mesmo tendo toda capacidade para isso. Foi uma resposta negativa a um estímulo positivo. Outra pessoa que tivesse recebido as mesmas informações negativas que ele poderia dar uma resposta positiva a sua nova função.

Podemos concluir afirmando que há certa dificuldade em ditar um padrão para o comportamento humano, seja estudando as percepções e os estímulos, seja na tentativa de explicar o seu comportamento em situações diversas, ou buscando compreender, como Freud, o seu psiquismo (consciente, pré-consciente, inconsciente). Como pudemos notar, mesmo os estímulos positivos não estão isentos de receber respostas negativas, ou os estímulos negativos, respostas igualmente negativas. Não é sem razão que o Dr. Augusto Jorge Cury (2006, p. 86-87), psiquiatra e estudioso do pensamento, escreve:


... um pai alcoólatra, agressivo e socialmente alienado poderá gerar dois filhos com personalidades totalmente distintas, pois a cada momento da interpretação eles possuem variáveis intrapsíquicas qualitativamente diferentes, que interpretarão os estímulos advindos do pai de maneira diferente, gerando construções psicodinâmicas diferentes; que se arquivarão em suas memórias como RPSs [Representações Psicodinâmicas] diferentes; que produzirão histórias diferentes; que sofrerão leituras multifocais e financiarão a produção de matizes de pensamentos essenciais diferentes; que sofrerão um processo de leitura virtual e produzirão pensamentos dialéticos e antidialéticos diferentes; que, finalmente, estimularão e redimensionarão o desenvolvimento da personalidade por trajetórias diferentes.


            Em suma, cabe à realidade psíquica de cada indivíduo atuar sobre a realidade externa e seus estímulos, produzindo ações e reações tão diversas quanto à complexidade da existência humana. O que determinará cada pensamento, cada ação cada atuação na história dependerá de como cada um absorve e assimila as informações recebidas, o valor que lhes comuta; as respostas serão apenas um reflexo da somatória desses fatores. Se positivas ou negativas, no momento em que ocorrem, o que decidirá é aquilo que cada um plantou e cuidou dentro de si. Como afirma a Bíblia: “Não é o que entra pela boca que contamina o homem, mas o que sai da boca... o que sai da boca vem do coração, e é isso que contamina o homem” (Mateus 15:11,18).


Percepção tátil


            A percepção do tato faz parte de um dos cinco sentidos do ser humano e está presente também nos animais. Ele continua presente mesmo quando estamos dormindo. Segundo o dicionário Silveira Bueno, tato é o “Sentido pelo qual os animais percebem sensações térmicas, dolorosas, de contato e pressão, cujo órgão é a pele”. Mas mesmo algo tão simples como o sentir a textura dos objetos e o seu calor pode estar repleto de informações erradas e, muitas vezes, distorcidas. Da mesma forma como ocorre com a percepção visual – conforme estudamos acima – o sentir algo pode gerar em nós sensações adversas, incoerentes com o objeto em si. Os exemplos dados em sala durante a aula de Metodologia Científica, quando uma criança se aproxima de um forno quente sem conhecer o risco de queimar as mãos, ou quando quer enfiar o dedo numa tomada ao desconhecer a realidade da energia elétrica, mostram algumas dessas situações.

            O tato estimula a nossa mente e evoca recordações, podendo gerar comportamentos. Tais comportamentos não são, segundo a teoria da Gestalt, uma resposta a um estímulo como ele é, mas como o sujeito o percebe. Por exemplo: para a maioria das mulheres, serem tocadas afetivamente por um homem tende a gerar uma sensação de prazer, bem-estar e segurança. Para algumas que sofreram algum tipo de abuso sexual na infância, acima de tudo se partido do próprio genitor, o fato de receber o estímulo do toque de um homem pode evocar distorções da realidade, trazendo sensações de repugnância, desprezo, medo, indiferença, insegurança e até mesmo ódio. O mesmo pode ocorrer se ela for aquela que deseja tocar.


Percepção gustativa


            Assim como todas as outras percepções, o paladar, uma vez estimulado, evoca todo tipo de reações, boas e ruins. Isto porque não sentimos a realidade do que estamos degustando em si, mas a gama de percepções que isto nos traz. Os dois exemplos que posso dar, tiro-os da minha própria experiência de vida. Quando vim morar no nordeste pela primeira vez, eu tinha 14 anos de idade. Antes de rumar para cá com uma tia do interior, passamos por São Paulo, onde nos hospedamos na casa de um tio, irmão dela. No jantar, foi servido um prato típico do nordeste – cuscuz. Eu jamais havia comido cuscuz e a sensação foi das piores, porque ele estava realmente muito ruim, com um gosto nada agradável. Então, esta foi a primeira experiência que tive na minha vida com este prato.

            Quando chegamos ao nordeste e eu já havia me instalado na casa da minha tia, no meu primeiro jantar, deparei mais uma vez com o cuscuz. Assim que vi aquele aglomerado de farelo de milho cozido sobre a mesa, a minha sensação foi de repulsa, porque imediatamente lembrei-me da primeira vez que havia comido cuscuz em São Paulo. Lembrei do terrível gosto que senti e relutei em comer mais uma vez. Porém, foi preciso encarar o tal alimento e, ao colocá-lo na boca, vi que o gosto era totalmente diferente: era delicioso! Logo percebi a diferença do cuscuz feito pela primeira cozinheira e aquele preparado por minha tia. Lembrar do passado ativou uma perspectiva distorcida em minha mente e me fez rejeitar interiormente aquela realidade, até prová-la e perceber que era totalmente diferente.

            Situação semelhante ocorreu quando servi o exército, já de volta ao Rio de Janeiro, quando já tinha 19 anos. Em alguns dias específicos eles serviam peixe na hora do almoço, e o gosto era também insuportável. Durante quase um ano fui obrigado a comer aquele alimento que minhas papilas gustativas rejeitavam veementemente, até que findei traumatizado. Depois que fui dispensado do exército, carreguei comigo o trauma daquele peixe que eu detestava comer. Em diversas situações deparei com peixes feitos daquela maneira e sentia o gatilho disparar na minha mente, trazendo repulsa até mesmo pelo cheiro que sentia. Ainda hoje, todas as vezes que como peixe meu organismo me faz recordar do que eu comia no exército, isto é, a minha percepção gustativa evoca uma realidade que já não existe e a vivencio como se ainda acontecesse. Isto gera um comportamento distorcido da realidade, da imagem real do peixe, me levando a rejeitá-lo.

            Nisto podemos pensar sobre a negação daquilo que é real em vista da distorção que fazemos da realidade. Quantas experiências deixamos de ter, quantas situações deixamos de viver, quantas coisas maravilhosas e construtivas deixamos de aproveitar por estarmos preso a uma realidade que não existe mais. Negar-nos a viver o presente por medo do passado, não somente nos impede de existir no hoje – estamos sempre presos ao que não é mais – como também dificulta a construção do nosso amanhã. Na verdade, parecemos evoluir em partes, não como um todo. Algumas partes que formam o todo do nosso ser estão doentes e precisam ser cuidadas, para que a nossa totalidade existencial possa se libertar e gerar comportamentos condizentes com a realidade. Ainda que, segundo a teoria da Gestalt, jamais observemos o objeto em si, mas a imagem que construímos dele, conforme vamos nos apercebendo de nós mesmos e lidando com nossos traumas, mais nos abrimos para dar as respostas certas aos estímulos certos e, desta forma, transformar toda a nossa realidade psíquica, emocional, espiritual, fisiológica e, por fim, a nossa realidade social (nosso relacionamento conosco, com as pessoas, com o mundo e com Deus).


Percepção auditiva


            A percepção auditiva também está muito relacionada com a história de vida de cada indivíduo. Cada som que ouvimos, seja numa música ou aqueles produzidos pelo ambiente (o barulho de uma cachoeira, o latido de um cachorro, a buzina de um carro, por exemplo) evocam lembranças que nos trazem percepções diferentes da realidade apresentada. No exemplo da música, quando escutamos uma melodia romântica, podemos associá-la a algum momento da nossa vida onde nos apaixonamos e vivemos uma linda história de amor. A música deixa de ser uma realidade em si para se transformar na sensação que desperta em nós, e esta pode ser tanto positiva quanto negativa, dependendo das lembranças que nos traz.

Lembro-me de um tempo em que morei com minha esposa, hoje ex-esposa, e meu filho numa casa cedida por um primo. Todos os dias, no mesmo horário, numa rua próxima, um alto falante tocava as mesmas músicas num volume altissonante, enquanto um homem apresentava as atrações do “Cine Estrela Dalva”, terminando sempre com a palavra apelativa “anal”. Com o passar do tempo, aquele momento do dia tornou-se uma tortura. Conforme a hora se aproximava, aumentava a minha ansiedade; e durante o espetáculo de poluição sonora, meu transtorno de ansiedade e raiva progredia. Muito tempo depois de sair dali, sempre que ouvia tocar em algum lugar uma das músicas que faziam parte do repertório do Cine Estrela Dalva, eu era acometido de um ataque de ansiedade e de pânico, como se estivesse vivenciando naquele exato instante o mesmo trauma do passado. Demorei muito tempo para me libertar disso.

            Assim como as demais percepções, a auditiva também gera comportamentos e mostra como percebemos a realidade que nos cerca. Aqui podemos nos perguntar: Quem somos quando estamos vivenciando uma experiência passada por meio da percepção de estímulos ocorridos no aqui e agora? Se por alguns instantes nos distanciamos do objeto e da sua realidade intrínseca, estamos, também, nos distanciando de nós mesmos? Percebemos, assim, que a realidade em que vivemos aqui e agora está repleta da realidade que já não é, pois o passado continua presente e atuante nas respostas que damos aos estímulos que recebemos. Ribeiro (1985, p. 78) indaga: “Se o aqui e agora traumatiza, o trauma vem dele ou da relação dele com o passado?”. Surge daí a percepção do todo e das partes.

            Devemos lembrar, porém, que esta percepção é muito mais que fisiológica e está ligada ao meio em que o indivíduo vive e àquilo que acontece com ele nesse meio. O homem não somente age com e na história, mas também interage com ela, criando e transformando a sua realidade, não apenas a partir de percepções como aquelas que estamos estudando aqui, mas igualmente por meio das suas crenças e valores apreendidos, construídos no decorrer de sua vida, onde todas essas percepções estão presentes, mas podem ou não influenciá-lo direta ou indiretamente. É impossível criar generalizações.


Percepção olfativa


            Tudo aquilo que dissemos a cerca das percepções visual, tátil, gustativa e auditiva, pode ser computado à percepção olfativa. Resta-nos apenas exemplificar. Posso citar, mais uma vez, exemplos da minha própria experiência para demonstrar a distorção da realidade presente na percepção olfativa. Alguns aromas que sinto de comidas, das ruas ou algum outro, reportam-me imediatamente a São Paulo, onde morei por um ano e meio. É como se eu entrasse numa máquina do tempo e voltasse aos meus 16 anos. Sou capaz de me situar mentalmente e verdadeiramente sentir até mesmo o clima da cidade do passado, como se estivesse realmente lá. O mesmo acontece com certos cheiros da natureza, que me remetem à minha infância vivida em Petrópolis, cidade serrana do Rio de Janeiro. Do aqui e agora sou transportado para o passado e volto à realidade em questão de segundos.

            Podemos observar que somos construídos durante o decurso de nossa história de vida por fatores dos mais variados possíveis, que continuam influenciando nossas percepções e gerando comportamentos. Não é somente uma visão intuitiva da realidade ou de essência, mas passa pela prática (Ribeiro), porque o ser humano se constrói e se reinventa a cada dia, absorvendo realidades e irrealidades que constroem o seu caráter, que influenciam no seu temperamento, nas suas decisões, nos seus sonhos. Conforme nos diz Ribeiro (1999, p. 39), “Vemos que o SER, totalidade essencial, se unifica absolutamente, engloba todas as demais realidades, como essências individuais ou existência participante, e tudo se faz inteligível nele e disponível à consciência como o modo de perceber a realidade”. Desconstruir a imagem irreal para que a real – e ideal – retome o seu lugar, deve fazer parte do processo terapêutico.



Bibliografia



BOCK, Ana Mercês Bahia; FURTADO, Odair; TIXEIRA, Maria de Lourdes Trassi. Psicologias: uma introdução ao estudo da psicologia. 13. ed.  São Paulo: Saraiva, 1999.



CURY, Augusto Jorge. Inteligência Multifocal. São Paulo: Cultrix, 2006.



DEUS. Bíblia Sagrada. Sociedade Bíblica do Brasil, ed. Revista e Atualizada, São Paulo, 1990.



RIBEIRO, Jorge Ponciano. Gestalt-Terapia de curta duração. São Paulo: Summus, 1999.

_____________. Gestalt-Terapia: refazendo um caminho. São Paulo: Summus, 1985.





Mizael de Souza Xavier

25 e 26 de fevereiro de 2012.









[1] Esquema desenvolvido pelo próprio aluno/autor.

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